Tuesday, January 6, 2009

Os riscos do Risco

O Risco foi arisco. Estava ali exposto, visível e previsível, mas "escondido" debaixo do matagal de vegetação espontânea que, nas últimas décadas, tem recuperado sob os auspícios do Parque Natural.
É, por outro lado, um excelente tema para reflectirmos sobre os objectivos, os métodos e os limites da prospecção arqueológica e dos inventários arqueológicos.
Numa visita anterior, guiada pelos espeleólogos de serviço, a equipa fez o reconhecimento de uma estrutura circular, aparentemente mal conservada, que, adequadamente, foi relacionada com o monumento da Roça do Casal do Meio (especulação que, aliás, foi levantada, logo no primeiro dia de prospecções, com base nas informações e nas observações do Francisco Rasteiro).
Nas imediações dessa estrutura (e de outra muito menos evidente), foram identificados e registados abundantes fragmentos de cerâmica "pré-histórica", uma lasca de sílex e um fragmento de instrumento de pedra polida.

Numa nova visita, em jeito de "abertura oficial" das prospecções de 2009, os dados em si não se alteraram: alterou-se, porém, profundamente, a entidade dos achados.
Na verdade, apesar de, no total, se tere recolhido mais de uma centena de fragmentos cerâmicos, quase exclusivamente de cerâmica manual, com cozeduras irregulares, pastas pouco compactas, curiosamente, não se recolheu nenhum bordo ou qualquer outro elemento de diagnóstico (fundos, asas, mamilos, decorações...). Só cacos e, na última visita, mais uma lasca de sílex.

Perante estes dados, poderíamos apenas, teoricamente, classificar o sítio como Pré ou Proto-histórico; isto é:
a) Neolítico Antigo, atendendo a que estamos numa área próxima do sítio da Roça do Casal do Meio 2, identificado no ano passado. Porém, sem cerâmicas decoradas e com pouco sílex, seria pouco plausível;
b) Neolítico Médio. Sem paralelos conhecidos em Sesimbra, mal caracterizado ergologicamente, e onde, pelo menos, seria de esperar maior presença do sílex.
c) Neolítico Final. Plausível, em termos de implantação e de contexto, podia complementar o povoado dos Prados, ali ao lado. Porém, o aparecimento de formas abertas, acentuado no Calcolítico, torna inverosímil que em, mais de 100 fragmentos, não exista um único fragmento de bordo ou carena. O sílex também deveria estar mais presente.
d) Calcolítico. A presença esmagadora de formas abertas, torna ainda mais expressiva a ratio entre perímetro do bordo e superfície da peça; faltariam também elementos recorrentes, como os pesos de tear, o barro de cabanas, etc.
e) Bronze Antigo/Médio. Enigmática, por ser mal conhecida, esta época não é de excluir; na verdade, existem vária questões genéricas, ainda muito em aberto, relacionadas, por um lado, com a crise (as crises?) do Calcolítico - que parece ter tido consequências ao longo de quase todo o 2º milénio - e a emergência do povoamento do Bronze final, numa envergadura completamente distinta.
f) Bronze final. O tipo de cerâmicas (pastas, cozeduras, tratamentos de superfície), e a relação muito expressiva entre fragmentos de parede e bordos, mesmo sem outros elementos de diagnóstico, aponta para o Bronze Final.

Como sabemos, os cacos não falam: é preciso falar por eles, servir de intérprete, interpretá-los.
Neste caso, em que não foram observados "fósseis directores", interpretar os dados implica, entre outras coisas, ver a floresta, para além da árvore, sem deixar de olhar para além da floresta. Em vários sentidos.
Claro que corremos riscos, ao interpretar; e temos que fazê-lo sem preconceitos, de mente aberta. Na prospecção, como na vida. Podemos sempre falhar: se isso acontecer - e acontece a todos - voltamos ao princípio, relemos os dados e voltamos a produzir novas interpretações.

Porém, para inferir esta cronologia, existiam já outros elementos:
1) A reutilização da Roça do Casal do Meio, como sepultura de elites indígenas, tinha sido recentemente proposta por Harrison, com base na análise da documentação inédita das escavações de K. Spindler.
A descoberta, no ano passado, do povoado das Marmitas, resolvia já, efectivamente, a questão dos indígenas vs intrusos, criando um contexto local para o monumento.
Porém, o carácter "elitista" dos enterramentos da Roça do Casal do Meio suporta, naturalmente, a possibilidade de o povoamento ser mais intenso e se estender, com ou sem solução de continuidade, muito para além do povoado das Marmitas.
Tal como os achados metálicos das Pedreiras... ou a sentinela que parece ser o Castelo dos Mouros, já no concelho de Setúbal, mas à vista das Terras do Risco.

Na verdade, como se pode verificar na imagem do Google, o povoado das Marmitas e o agora identificado povoado do Risco correm o risco de serem uma e a mesma coisa. Falta verificar.
É certo que povoamento do Bronze Final, distribuído em pequenos núcleos, em redor de um povoado central, foi recentemente identificado em Monsaraz, e que podemos aqui estar perante um fenómeno semelhante.

Num cálculo aproximativo e ainda provisório, tendo em conta a topografia, (falta prospectar entre os dois sítios) o povoado das Marmitas ocupará uns 5 ha, enquanto o povoado do Risco ocupará cerca de 15 ha.

Se se confirmar, estamos perante uma descoberta que resolve velhas questões em volta da interpretação da Roça do Casal do Meio. Temos indígenas. Pexitos do Bronze Final.

As reutilizações quase sistemáticas das cavidades cársicas no Bronze Final, um fenómeno bem conhecido em Sesimbra (a Lapa do Fumo é uma imagem de marca para as cerâmicas de ornatos brunidos) completam o quadro mental que presidiu à reutilização da Roça do Casal do Meio.

As recentes descobertas de evidências correspondentes à 1ª Idade do Ferro, também em contextos cársicos, fornecem dados que nos permitem, por outro lado, vir a equacionar questões como a da transição Bronze Final-Ferro, no contexto dos circuitos orientalizantes dos estuários do Tejo-Sado.

A estrutura circular que motivou as visitas ao local, pode, à partida, ser interpretada de diferentes formas:
1) Trata-se de um tholos não reutilizado. A forma, as dimensões e o contexto permitem sustentar esta hipótese. A escassez de pedras (presentes, em larga escala, na Roça do Casal do Meio) pode eventualmente, explicar-se pela reutilização do material, no contexto do povoado da Idade do Bronze.
2) Tholos reutilizado como sepultura. Pouco plausível, atendendo à separação espacial entre a necrópole o povoado, que a Roça do Casal do Meio implica. Também os dados gerais sobre o mundo funerário não sustentam esta hipótese.
3) Fundo de cabana do Bronze Final. No Sudoeste, as cabanas do Bronze Final tendem a ser de planta oval, delimitadas com lajes em cutelo. A planta da estrutura é compatível com a das cabanas calcolíticas, mas não há evidências dessa época, nos materiais de superfície.
4) estrutura de época histórica e de cariz etnográfico (abrigo de pastores ou curral).


A estrutura circular


Avaliando a estrutura circular


Pequena estrutura curva, aparentemente de origem antrópica, nas proximidades da anterior.


A Arrábida vista das Terras do Risco


1. Calhariz; 2. Pedreiras artesanais; 3. Povoado das Marmitas (Bronze Final); 4. Marmita do Gigante; 5. Povoado da Roça do Casal do Meio 2 (Neolítico Antigo) ; 6. Roça do Casal do Meio; 7. Povoado dos Prados (Neolítico Final/Calcolítico) ; 8. Falésia mais alta da Europa; 9. Povoado do Risco (Bronze Final); 10. Pedreiras industriais.

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